MEMORIAL AOS MORTOS NA GRANDE GUERRA

Os Cemitérios 


A I Guerra Mundial inaugurou um processo de massificação da morte nunca antes experimentado. O quantitativo de soldados perecidos que se acumulava nos campos de batalha, em terra de ninguém, inicialmente sepultados em cemitérios civis próximos da frente, cuja sustentabilidade espacial rapidamente se esgotava, despertou uma necessária reacção das forças dirigentes envolvidas no confronto. Procurou-se rapidamente regulamentar e criar cemitérios militares de forma a evitar a presença eminente da morte, não só pelos efeitos na moral das tropas e no agravamento das condições de saúde na frente, mas acima de tudo para evitar o retorno desta visível massa de corpos a casa.
A criação destes espaços fúnebres especificamente militares é indissociável da particularidade deste conflito, bem como dos processos de secularização dos cemitérios, onde se absorverá estrutura e simbologia. A generalizada campanha oitocentista de secularização dos cemitérios, de que Portugal não é excepção – oficializada em Abril de 1911 com a I República –, é marcada por uma forte apropriação da liturgia cristã de morte e ressurreição, patente nos formatos de culto e rito, que vão desde o minuto de silêncio, à deposição de flores, a preocupação com a individualização do morto, quer através da identificação, quer pela especificidade arquitectónica ou escultórica de que o espaço tumular se possa revestir (Catroga, 1999, p. 267). O contexto de secularização da morte é, assim, propício às discussões em torno da regulamentação dos cemitérios militares, transpondo-se a simbologia cristã; a individualização, pelo fim das valas comuns; a apropriação da natureza; e, acima de tudo, a centralidade do culto dos mortos.
Apesar da já existência nos E.U.A. de cemitérios militares, na Europa este fenómeno está inevitavelmente ligado à Grande Guerra. Pela primeira vez foi criada legislação para o tratamento dos soldados mortos – projecção e concepção de cemitérios militares. A França foi o primeiro país a fazê-lo, em Dezembro de 1915, sanciona o direito de cada indivíduo a um lugar único de repouso, ultrapassando soluções anteriores em que os soldados eram depostos em valas comuns. Culturalmente diversificados entre si, os projectos das nações aliadas para o campo-santo militar vão integrar os elementos já enunciados do cemitério romântico. Uma tentativa idílica e metafórica de revalorizar a morte, num sentido religioso, político e ideológico, procurando ultrapassar a dimensão biológica básica da morte de massa do campo de batalha.
Em Portugal, a primeira legislação para tratamento dos mortos de guerra portugueses na frente europeia surge em 1917. Procurou-se regulamentar esta situação com a estruturação de um serviço, futuramente denominado Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra (CPSG), responsável pela identificação, concentração e inumação dos corpos. Face a uma limitação de recursos, exigiu-se da CPSG um esforço acrescido para concentrar os corpos espalhados pelo território da Flandres em cemitérios militares exclusivamente portugueses, criados para tal com a devida e necessária monumentalidade. Na verdade, durante o conflito, os esforços desta comissão debateram-se com as limitações sanitárias e espaciais impostas pelas autoridades francesas, levando a que os corpos ficassem espalhados por vários cemitérios (em 88 cemitérios da Alemanha, 23 da Bélgica; 2 da Espanha; 141 da França; 1 da Holanda e em 3 cemitérios da Inglaterra)* .
A união entre culto funerário, religioso e patriótico alargou-se aos projectos oficiais dos cemitérios militares, aquém da maior ou menor laicização dos estados empreendedores. A sua projeção, maioritariamente próxima dos locais onde os soldados caíram e face à impossibilidade de repatriamento dos corpos e na procura da sua concentração num único espaço, delineou fenómenos consagrantes de uma nova liturgia civil, assimilados de rituais da tradição Cristã. A Cruz personifica a oblação dos homens em terra e a garantia de salvação eterna pela ressurreição e a Pedra da Lembrança, talhada em forma de altar – o altar da Pátria – passava a ser o centro litúrgico de uma nova religião, onde os soldados mortos são igualmente sacralizados pelo eterno sacrifício colectivo em nome da Nação. Assim, foi criado o único cemitério exclusivamente português – Richebourg l’Avoué.
A acção de CPSG foi extremamente importante, apesar das limitações claras que resultaram da identificação dos corpos ou mesmo da necessidade da permanência destes em cemitérios de território aliado. Dos cerca de 2086 mortos, 206 não foram identificados ou os corpos não foram encontrados. Apenas no final do conflito seria possível a concentração, não total, uma vez que foi organizado um sector de 44 campas no cemitério de Boulogne-sur-Mer e de 7 campas em Antuérpia, mas da maioria dos corpos num único cemitério militar exclusivamente português, Richebourg l’Avoué, com 1831 mortos, dos quais 238 são desconhecidos.
Em território português, os cemitérios militares exclusivamente dedicados aos combatentes mortos na I Guerra Mundial são inexistentes, mesmo a criação de talhões especialmente dedicados a estes mortos são precários e alguns sem qualquer formatação especial, igualável àqueles traçados de origem que apareceram por toda a Europa no pós-guerra.
Na verdade, o repatriamento dos corpos seria excepcional. Há, no entanto, um empenho de algumas entidades locais na criação de espaços nos cemitérios locais exclusivamente destinados aos filhos da Pátria que, maioritariamente com o apoio, incentivo e patrocínio da Liga dos Combatentes da Grande Guerra (LCGG), arquitectados à imagem dos cemitérios militares europeus com uma harmonia regular e uniformização das lápides brancas que comportavam apenas a identificação e a cruz de guerra. Os combatentes depositados nestes lugares eram essencialmente, aqueles que haviam perecido em Portugal e que, não raras vezes, devido à pobreza em que se encontravam, o funeral e talhão era providenciado pela LCGG.
A impossibilidade de repatriamento dos corpos e a necessidade de abstracção inerente à morte de massa exigiu a criação de símbolos representativos que legitimassem o culto e, acima de tudo, o esforço de guerra. A ausência do peso aniquilador da massa de mortos em grandes cemitérios militares em Portugal, à parte as questões inerentes ao quantitativo de soldados portugueses mortos, tem uma carga profunda na forma como a sociedade e os dirigentes da I República lidam com as vítimas da guerra e, acima de tudo, na delineação da memória da I Guerra Mundial em Portugal.

CATROGA, Fernando – O Céu da Memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos. Coimbra: Minerva, 1999.
Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro. Ministério da Guerra. Lisboa, 1937.

 Texto publicado e adaptado do Dicionário de História da I República e Republicanismo.

(*) AHM, 1.ª divisão, 35.ª secção, caixa 1401 – Relação de cemitérios estrangeiros com sepulturas portuguesas de guerra. Lisboa, 12 de Agosto de 1937, p. 1-7.

 

Sílvia Correia



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