MEMORIAL AOS MORTOS NA GRANDE GUERRA

História, Memória e Identidade Nacional

O historiador Jacques Le Goff reflectiu, de forma assertiva, sobre a relação entre história, memória e identidade: “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia […]. A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (Le Goff, 1984, p. 46-47). Dentro do processo de inscrição da memória, que é, segundo Fernando Pessoa, a “consciência inserida no tempo”, situa-se o programa das ritualizações dos centenários de figuras ou acontecimentos representativos, justificados, no plano da religiosidade cívica “res publicana”, por Teófilo Braga na obra Os Centenários como síntese afectiva nas sociedades modernas (1884), com o fito de tecer uma ética pública patriótica, através de laços afectivos, estímulos conscientes e espírito altruísta para a renovação do “contrato social”, ao qual era necessário juntar uma “convergência sentimental” entre as acções do presente e as representações simbólicas do passado, que, obviamente, são sujeitas geracionalmente a processos de reconstrução.
 A Grande Guerra (1914-1918), que também teve as características de “guerra civil europeia” e de última “guerra das pátrias”, configurou um momento representativo da história mundial, com consequências políticas, militares, económicas, sociais ou culturais profundas, principalmente para a Europa. Abriria um longo ciclo de “guerra permanente” e evidenciou, na resiliência dos combatentes das várias nações, três características ético-políticas fundamentais: (a) alguma normalidade mental da relação com a morte (vinda da época moderna); (b) a inculcação de uma hierarquia de valores cívicos devedora da coragem física, da integridade moral e da solidariedade humana; (c) a afirmação de uma ética do patriotismo/nacionalismo (“religião da Pátria”; “morrer pela Pátria”), em que o colectivo anónimo (“soldados desconhecidos”) se impôs face a cultos da personalidade (Vincent, 1991, p. 208). A panteonização em 1921 no Mosteiro da Batalha de dois Soldados Desconhecidos portugueses (vindos de África e da Europa), com a Chama da Pátria aí acesa desde 1924 até hoje, a criação da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, a formação da Comissão dos Padrões da Grande Guerra ou as Comemorações do 9 de Abril de 1918/Dia do Combatente (Batalha de La Lys) e do 11 de Novembro de 1918/Dia do Armistício) são exemplos fortes do novo espírito patriótico identitário que perdura até hoje.
 A defesa do intervencionismo português, espelhado nas notáveis memórias de guerra dos combatentes Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e João Pina de Morais, inseridas no programa cultural e político do movimento da “Renascença Portuguesa” (constituído no Porto em 1912), transportava imagens da identidade nacional radicadas numa dupla justificação patriótica: (a) política e geoestratégica, por Portugal ser aliado natural do bloco demoliberal anglo-francês contra o expansionismo cesarista germano-austríaco; (b) ética e cultural, para aprofundar democraticamente a proposta republicana de revigoramento moral e de regeneração nacional. Apesar do debate polarizado na política portuguesa entre “intervencionistas” (beligerância) e “anti-intervencionistas” (neutralidade) sobre a participação na frente europeia da Grande Guerra, após a declaração de guerra do Império Alemão a Portugal (9 de Março de 1916) afirmaram-se com grande audiência, na vida nacional, discursos político-culturais sobre a oportunidade regeneracionista que a Guerra poderia proporcionar, activando a força social criadora dos povos e das elites.
 Nas suas Memórias da Grande Guerra (1919), Jaime Cortesão falaria no novo despertar do “génio do Povo” português (1914-1918), que se revelava, por vezes, em “isolados clarões de relâmpago”, dando nota deles na resistência às invasões napoleónicas (1808-1812) e ao «ultimatum» inglês (1890) e nas jornadas da revolução republicana (1910). Símbolo forte da identidade nacional, a então jovem Bandeira Nacional veio a ser sagrada com o sangue vertido pelos militares portugueses nas frentes africana e europeia de guerra.

Referências bibliográficas:
 Afonso, Aniceto e Gomes, Carlos de Matos (coordenação), Portugal e a Grande Guerra, 1914-1918, Matosinhos, QuidNovi, 2010.
 Le Goff, Jacques, “Memória”. Tradução de Bernardo Leitão e Irene Ferreira, Enciclopédia Einaudi, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 11-50.
 Vincent, Gérard, “Guerras ditas, guerras silenciadas e o enigma da identidade”. Tradução de João Barrote, in Ariès, Philippe e Duby, Georges (direcção), História da vida privada, vol. 5, Porto, Edições Afrontamento, 1991, p. 201-247.

 

Ernesto Castro Leal

(Faculdade de Letras/Universidade de Lisboa)



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