MEMORIAL AOS MORTOS NA GRANDE GUERRA

O Soldado Desconhecido


À semelhança dos rituais da antiguidade, a ideia de apropriação de um Soldado Desconhecido para a Grande Guerra surge inicialmente em França, mas é a Grã-Bretanha que concretiza o fenómeno com a primeira escolha anónima ritualizada de um soldado morto em conflito, colocando-o na Abadia de Westminster, a 11 de Novembro de 1920, data em que a França reproduz o mesmo fenómeno, mas sob o Arco do Triunfo. A este culto indissociavelmente patriótico e fúnebre, representativo de todos os mortos de guerra, associa-se a Chama Eterna, que evoca aos sobreviventes o seu sacrifício, como uma chama viva que se renova, e se funde num gesto quotidiano, partilhado por compatriotas. Sintomas particulares do culto dos mortos, generalizados a todos os intervenientes na Grande Guerra e que se manifestam de uma forma mais ou menos profunda e específica, condicionando as cores com que pinta o quadro da Memória da Guerra.
Em Abril de 1921, uma considerável celebração internacional do Esforço da Raça foi organizada e executada pelo Ministério da Guerra. Dois Soldados Desconhecidos foram exumados e enterrados no Mosteiro de Santa Maria Vitória, na Batalha. Um procedimento cerimonial à imagem das grandes celebrações europeias – o desejado brilhantismo de um reconhecimento pelo esforço realizado e marcado, desde o início, por especificidades que vão além da normalização geral entre os países participantes. O controverso envolvimento das Forças Armadas Portuguesas em dois campos de batalha levou à necessidade da escolha aleatória e anónima de dois soldados desconhecidos, provenientes quer de Flandres, quer de África.
A concepção do programa de homenagens, a cargo do Ministério da Guerra, em colaboração com outros ministérios, câmaras e associações, que se desenrolaram desde a chegada dos Soldados Desconhecidos até à sua consagração no Mosteiro de Santa Maria Vitória, partiu da importante convocação dos participantes, desde associações a individualidades, nacionais ou internacionais, o que permitiria garantir a persistência da intervenção portuguesa no conflito armado na memória internacional. Contam-se, entre demais presentes, o Marechal Joffre, destacado chefe militar francês nos campos de batalha da I Guerra Mundial; o Generalíssimo Diaz, o Almirante D. Pedro Zofia e o Governador de Gibraltar, General Smith Dorrien, bem como L. Carnegie, adido inglês em Portugal (denunciando o pouco esforço da Grã-Bretanha em se fazer representar).
Os festejos iniciaram-se no dia 5 Abril, logo que as primeiras representações diplomáticas acorreram a Lisboa, paralelamente ao desembarque do Soldado Desconhecido de África. O herói foi depositado no Arsenal da Marinha ao lado do Soldado proveniente da Flandres, que já aí se encontrava. No dia 7, procedeu-se ao transporte dos féretros do Arsenal até ao Palácio do Congresso, onde foram condecorados pelo Presidente da República para que definitivamente pudessem ser velados pelos portugueses.
A jornada central das comemorações – 9 de Abril – foi marcada pelo cortejo triunfal em Lisboa, que terminou na gare da Estação do Rossio. Aqui, foram depostos num furgão aberto, onde permaneceram até à sua partida para a Batalha, a realizar-se no dia seguinte. A última etapa começou com a concentração na Estação do Rossio para a viagem em três comboios especiais, que transportavam não só os corpos dos dois soldados, como o Presidente da República, Cardeal Patriarca, o Governo e todo o corpo diplomático, bem como as missões militares estrangeiras. Já na Batalha, à saída da gare, iniciou-se uma caminhada triunfal. Às 17 horas, concentrou-se no largo do mosteiro, juntamente com todas as personalidades e população que o aguardavam, rodeados por respeitosos semblantes das forças militares e respectivas bandeiras, até que entraram na sala do capítulo, sua morada definitiva. Aqui, dar-se-ia início à cerimónia final, com os discursos, primeiro o Presidente da Câmara dos Deputados, Abílio Marçal e, posteriormente, o Presidente da República e as demais figuras, até ao encerramento das festividades em homenagem aos Soldados Desconhecidos. O discurso de António José de Almeida resumia, num tom apologético e justificativo, a maior de todas as celebrações ao esforço português na Grande Guerra: “Se o templo, portanto, é, por si mesmo, apropriado para receber os Soldados Desconhecidos, ele o é igualmente pela companhia que lá dentro as circunstâncias lhes destinam. Heróis vão ao encontro de heróis. Sombras, espectros de grandeza vão receber no seu seio outras sombras igualmente espectrais e grandes. Aqueles que foram os modestos serranos de há dias vão tocar ombro com ombro os magníficos capitães de há séculos. Filhos do povo, saídos da lavoura, do mar, das fábricas, das minas, vão dormir ao lado dos reis e dos príncipes.” (Diário das Sessões do Congresso, 7 de Abril de 1921). Enganam-se aqueles que acreditam que a magnificência do acontecimento arrastava um acordo generalizado. Na verdade, não só neste dia, mas ao longo dos aniversários desta data, as contestações faziam-se às opções formais comemorativas, às implicações mais gerais do significado da celebração ou, mesmo, da perda de significado.
 
MOSSE, George L., Le guerre mondiali dalla tragedia al mito dei caduti, Laterza, Roma, 1990.
AHM – Arquivo Histórico Militar

 (*) Texto publicado e adaptado do Dicionário de História da I República e Republicanismo.

 

Sílvia Correia

 

 



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